quinta-feira, março 23, 2006

A partir daquele beijo, os acontecimentos se precipitaram como águas que estourassem barragem e comporta. Os dias foram céleres, correram em redemoinho, cálidos, apaixonados, enlouquecidos. Se não houvesse mais nada naqueles dias, haveria aquele núcleo. Aqueles tempos fechavam-se num núcleo, Santiago não soube depois se acontecido ou imaginado, uma imagem à meia-luz onde Cristina, com as coxas descobertas, de calcinha, entreabria as pernas sobre um birô numa sala fechada. Isto houve, aconteceu exatamente assim? Ele não o sabia.
Ele se lembrava vividamente de suas coxas, dos olhos dela em êxtase, dizendo-se, dizendo-lhe, "professor, professor...", num negaceio e numa busca de suas mãos. Os olhos dela, disto ele se lembrava, estavam em névoa, com o branco da esclerótica mais amplo, da íris verde, daquele doce verde à procura de um ponto além do teto, no infinito, quando ele o sabia, aquelas doces e lindas íris procuravam por ele, todo, o todo fauno Santiago. Ele lhe dizia, ou pensava tê-lo dito, enquanto ela delirava: "Eu sou o teu Mestre, o teu Diabo, o teu Guia. Repita". E ela repetia, com erro: "Eu sou o teu Mestre...". Ele corrigia: "Não, não é assim. Repita: Santiago, tu és meu Mestre, meu Diabo, meu Guia. Vamos". E ela: "Santiago, Santiago ....", e não ia adiante.
Então ele sorria, tinha vontade gargalhar, de gritar: "És minha! Faço de ti o que eu quero. Eu sou o teu Senhor. Eu sou o teu Amo. Amo e amo-te, minha serva, minha criada, minha cadelinha!". Mas isto não podia, seria ouvido, por isso apenas sorria, e prosseguiu falando, como se embriagado por álcool, quando ele estava, apenas, perdidamente enlouquecido: "Vamos descer ao inferno, Cristina? Hem? Queres?", e ela assentia, com o queixo, porque falar já não podia, porque naquele mesmo instante, Belzebu passava-lhe fricções ardentes com a palma da mão de Santiago, que ia e vinha sobre a nascente da sua vulva. "Responda, vamos, 'quero descer ao inferno'. Vamos". E ela: "quero, quero ...".
Isto aconteceu exatamente assim? Santiago, de madrugada, se levantava. E com as mãos sobre os cabelos: - Calma, foi exatamente assim! E dizia-se: "Como é que eu poderia ser acusado de atentar contra o pudor, como? Que pudor? Ela me pedia. Como é que eu poderia ser violento? Como, se ela clamava pelo gozo...", e corrigia-se, agora com pudor, com repulsa à palavra "gozo", para ele cheia de lama suja, criminosa: "... pelo prazer, isto, pelo prazer que somente eu lhe concedia?".
- Quero, quero...- ela lhe implorava, e seu corpo subia e descia, resvalando-se na superfície empoeirada da mesa, como uma rã, agora ele o sabia, na hora, não, como uma rã que recebesse descargas de corrente de Galvani. - Quero, quero... - a mão a circulava, tateava-lhe os pequenos lábios da vulva, sentia-lhe a fissura, o ponto móvel, por Deus, ele seria capaz de morrer para ter de novo aquele tato, aquela região que ele abarcava com mãos de estivador que tocasse a pele sensível do couro de um instrumento. Então ele soube, ah disso ele possuía a certeza, porque suas calças se esgarçaram no ato, disso ele possuía a prova, então ele realizou o que foi a vizinhança do maior prazer: ele se ajoelhou. Ele desceu os joelhos para reverenciar a sua ex-princesinha, agora a sua imperiosa deusa, que lhe suplicava o mergulho com ele no céu, e no inferno. No céu e no inferno, no céu e no inferno, ia e vinha, na luz e nas trevas, no prazer e na dor, este era o movimento rítmico das suas mãos enquanto se ajoelhava.
À primeira vista, ele descia para aplicar-lhe a língua no sexo. À primeira vista isto se confirmou, porque ele a beijou no sexo, sentiu o seu cheiro líquido de mar, de peixe, de ostra. À primeira vista porque ele se sentiu descer sob as ondas, no mar que o tragara, pois ele num mergulho desceu boca, nariz, bigode, olhos e todo o rosto, girando com a cabeça sobre a vulva, substituindo dessa maneira as mãos que buscavam os botõezinhos dos seios que despontavam. Aparentemente esta foi a vizinhança do seu maior prazer. Mas não. A vizinhança mais próxima veio a seguir. Ele desceu de joelhos para profaná-la. E isto quer dizer que ele se ajoelhou para adorá-la, para agradecer a Deus por aquele momento raro, cuja graça Ele lhe dera na pessoa de Cristina. Adorá-la para melhor profanação. Profaná-la para num ato religioso blasfemar, matar na Santa a santidade de Santa, foder a Virgem tão-somente porque muito a venerava, cria-lhe. Então ele foi um servo sendo o amo. Então ele foi um crente sendo o violador. Então ele foi um bárbaro sendo o civilizado. Um ser digno de ser sangrado sendo o sangrador. Um porco sendo um homem. Para que se cumprisse a profecia do seu fado, quando ele a via: "Ela será tua, porque já pertences a ela. Em teu coração tu já a mataste". Para que se cumprisse a obediência do seu ser. Então o porco falou:
- Santa Cristina, Virgem de misericórdia, gozo e luxúria. - E descendo o zíper, e buscando o pênis teso, e empunhando-o com as duas mãos: - Estão aqui a minha vela e o meu desespero. Toma. - E fazendo-lhe movimentos frenéticos sobre a pele, - Céu e inferno, céu e inferno, céu e inferno - alcança a glande, mas estranhamente, por mais que tente, o gozo não lhe vem. Porque, era estranho, naquela blasfêmia, dessacralização, naquela libertação havia nela mesma um impedimento. Era como se não fosse gozar, era como se fosse uma angústia, uma explosão de ressentimento. Mas não. Era como se naquele ir às últimas houvesse uma fronteira, uma ponte que ainda não era hora de arrebentar. Como um gozo sujo que ele repugnasse.
Cristina ergueu-se, desnorteada. Então como um criminoso que vê a sua vítima querer fugir, então como um louco cerebral que no momento mesmo do desvario vê a presa querer levantar vôo, porque Cristina, sem o prazer dos volteios sobre as coxas, sobre a vulva, sem o aquecimento dos seus biquinhos rubros, com restos de rastros de urtiga sobre a pele irritada, porque sem esses instrumentos ela voltava a si, então Santiago para restabelecer a anterior condição e ao mesmo tempo não ser interrompido na sua jaculatória, então Santiago arremessou-lhe o braço esquerdo sobre o pescoço, como um membro prolongado do pênis que sonhava melhor uso, e fez com que a cabeça de Cristina batesse de volta, com força, sobre a superfície dura da mesa. Foi um baque surdo. Ela gemeu. Ele jogou a manopla sobre a sua boca. E se pôs de joelhos, montando-a . E com o membro raivoso do sexo foi à sua boca. Ela chorava. Ele a acariciava, quer dizer, pensava em lhe fazer carícia, mas suas mãos apertavam-na nos cabelos, nas têmporas, no pescoço, sôfregas. O monstro do seu amor agora ele era. E com a voz rouca dizia-lhe:
- Tu és Cristina e sobre ti eu desço a minha pomba. Toma-a . Engole-a .
Cristina sufocava e ele não via, ou melhor, os restos de sanidade percebiam, mas ele não podia deter-se. Não para não interromper o sexo, pois aquilo já deixara de ter natureza libidinosa. Mas para não se interromper no instante supremo da adoração. E dizer, cavalgando-a, na sela delicada de sua boca, atado a ela por seu pênis, que forceja abrir mais espaço entre os lábios:
- A tua aproximação me apunhala. Foda-me então neste punhal, minha santa. Vamos, sangra-o . Mata-o . Vamos, vamos. Cavaaálo! - E cavalgava-a, enlouquecido porque o seu gozo não vinha, e para que o seu gozo não viesse.
Sem saber que este era o seu último recurso, como último alento na asfixia, somente por reflexo, já não mais animal, mas por reflexo puramente mecânico, de impossibilidade mesmo de manter a boquinha aberta, Cristina, ou o resto de graça do que fora Cristina, morde o pênis de Santiago. Com força, entre lágrimas e muco. Morde-o talvez para cortá-lo, rompê-lo, e retirar a vedação de sua boca. Santiago quase grita. Geme, roucamente, com dor e ódio geme.
- Ah, cachorra. A cadelinha morde! Cachorra ...
E retirando o membro, vê a marca dos dentes de Cristina na pele fina do pênis, de onde corre um fiozinho de sangue. Ele então enlouquece, definitivamente.
- É assim? Querias matar-me no bem mais precioso, é isso? Como é que um mutilado vai te foder, santa? Hem, santinha?
E bate no rosto da Santa que o traiu. Para fazê-la sofrer, bate-lhe, ele, o servo, o seu adorador rebelado. A doce Cristina, no entanto, perdeu as forças para reagir. É um ser em queda, descida do céu e da cruz. Ela já não peca, como Santiago a queria, nem obra milagres, como os santos o fazem. Obra fezes, como uma simples menina torturada, obra-se merda, como um simples animal machucado. Esta ausência de reação, este cheiro de fezes, líquido-pastosas, mais embrutece Santiago. Pois o animal quando ataca, e não come a sua vítima, quer da presa o movimento. O cachorro quando ataca na jugular, só estripará a vítima se ela se convulsionar de dor, debater-se no chão. Se o sangue correr farto do corpo imóvel, muito se frustrará o cachorro.
O cão-homem Santiago, diante da semi-imobilidade de Cristina, se faz simples cão-cão. Interrompido na jaculatória, não iria por cima ter o agravo de ser cortado no caminho da ejaculação. Agarrou-a pelo pescoço para que ela reagisse. Apertou-a até que os olhos de sua paixão-menina apenas se esbugalhassem. Apertou-a mais, até o ponto em que a boca da menininha santa apenas se abrisse, mecanicamente. Então se transformou o amador na coisa amada. Ele, esganador, se fez o esganado. Que ereção violenta recebeu o Mestre! Não se sabe, não se soube, nem ele próprio soube depois por que fez o que fez naquele corpo depois de sua última convulsão. Terá sido a urgência de aproveitar os restos de vida da sua santa? - Mas ela já estava morta, ele o viu na fuga de cor de suas faces, ele o viu no coração que deixou de bater entre as coxas que a montavam. Ou terá sido o desejo louco, absurdo, de pela vulva fazê-la voltar à vida? Ressuscitá-la, pelo condão sacro de sua pomba mordida, terá sido isso? Teria a cova estreita da virgem vagina o dom intimíssimo de arrancá-la do fundo da asfixia mecânica? Algo como um Eros, um G vital?
Santiago não soube depois. O fato é que, sabendo-a morta, forcejou o seu hímen, gozou toda a sua porra acumulada, refestelou o pau nas suas fezes. Cheirou-as, como um gourmet, e isto mais lhe aumentou o prazer, porque as sentiu muito estranhamente perfumadas. "Fezes de santa", ele se disse. Mas não as comeu. Por quê? Ele esteve próximo de onde tudo era possível. Por que não ultrapassou os últimos impedimentos?
Ele não foi capaz de explicar essa covardia, esse recuo derradeiro antes de acabar redondamente o seu ato. Talvez se não houvesse gozado, dizemo-lo nós, talvez se não o houvesse atingido a depressão que dá o ato que não se completa ... O fato é que Santiago teve medo, disso ele bem se lembrava. O medo não foi do sol da manhã que entrou claro na sala fechada, por frestas, como se de repente. O clarão que lhe iluminou as teias de aranha, as cadeiras quebradas que se amontoavam na sala, o corpo de Cristina sobre o birô, birô e corpo um só corpo, inerte, inútil e descartável. O clarão que lhe deu medo foi um extraordinário silêncio. Um vazio de si e das coisas mortas e quebradas em torno. Não é que ele se arrependesse e caísse em si, dizendo-se, "o que foi que eu fiz? como pude fazer tamanha desgraça?". O gosto do ato, o prazer que lhe dera, ainda resistia nos cantos da língua. O ardor no pênis ainda não arrefecera. Se mil vidas Cristina tivesse, mil vezes ele a profanaria. O silêncio, o medo que lhe deu foi o de saber que logo a campa iria tocar. Aquele corpo seria descoberto. O medo de que ao sair da sala ele voltaria ao mundo dos homens, com as suas leis e códigos repletos da moral que o condenaria. "Estúpida, hipócrita e imoral lei". Ele sentiu o silêncio, o medo da tempestade que se avizinha. Por medo então ele caiu em si. Retirou o lenço, limpou-se no rosto das fezes, e com certa alegria viu que o sangue do pênis já havia coagulado. "Ótimo". Então levantou o zíper. Cuidadoso, entreabriu a sala, encostou a porta e saiu.

Tá chovendo muito aqui... eu queria me encher de cocaína e vinho e me etrancar num quarto ouvindo Valter Franco... e escrever poesias e contos....