sexta-feira, janeiro 06, 2006

Homenagem ao Bob

Bob, desculpe, roubei sua idéia... Não sei se vc já havia escrito, mas, de qq forma, fica como homenagem!


Morava com a avó desde os quatro anos quando seus pais morreram. Não tinha amigos, conversava com as visitas que apareciam na casa para tomar chá. Não saía de casa, sua maior diversão era assistir novela com a avó. Ia à igreja, mas não acreditava em Deus; lia livro de romances, mas não acreditava no amor; jogava bingo, mas não acreditava em jogos de azar... não acreditava em nada, não tinha perspectivas de nada... Sua vida era parecido com uma fotografia em preto e branco em um dia nebuloso.
A única coisa que dava um pouco mais de cor à casa eram os animais que a avó possuía (aos montes). Eram vários cachorros, gatos, periquitos, râmsters... Todos morriam em pouco tempo: veneno, voavam, não voltavam, eram atropelados, devorados... Logo, apesar de já ter possuído, durante toda a vida, dezenas de animais, nunca teve mais de três ao mesmo tempo.
O menino, por morar e sempre conviver com sua avó, tornou-se, digamos, um pouco delicado demais devido à falta de uma figura paterna em que se espelhar. Em razão de toda essa delicadeza, sua avó sempre lhe pedia os favores em que eram necessários carinho, mãos leves, essas coisas que "meninos delicados" sabem fazer. A obrigação da vez era mimar o gato persa de sua vó: ele já não comia há muito tempo e estava, como diziam as comadres de sua vó, muito jururu.
E lá vai o garoto, todo prestativo, brincar o animalzinho. Depois de várias horas, viu que o gato estava mal mesmo, nem levantava do lugar, e até vomitou. Veneno? Talvez. O Seu Zé da Farmácia deve ter algum remédio que resolva.
_ Só tem remédio pra gente aqui.
_ Não tem pra bicho?
_ Num tem não.
_Vó, o Seu Zé não conseguiu tratá o Osvaldinho.
_ Ai Meu São Francisco de Assis (e pega uma imagem do santo e cola ela ao rosto), meu gatinho tão queridinho vai morrer, ai coitado, o que ele fez pra merecer isso, ele não mexe com ninguém, ele é tão quetinho, ai coitado...
_ Calma vovózinha...
_ Calma nada, eles matam todos os meus bichinhos.
_ Eu posso levá-lo ao veterinário se a senhora quiser...
_ Ah, o meu netinho queridinho faria isso pra vovó, faria?
E lá vai o garoto procurar, na lista telefônica, uma clínica para tratar do gato. Liga, pesquisa preço, muito caro, já não é mais veterinária, virou igreja evangélica... até que, depois de muitas ligações, acha uma clínica com um preço razoável, mas bem longe de onde ele mora e bem no meio de uma favela barra-pesada. Eu vou ter que andar no meio daquele lugar perigoso? Cruzes!!! Por minha avó, correrei esse risco!!!!
E o garoto decide correr o risco e salvar o gato. Pega uma mochila e carrega-a com um kit básico para uma via(da)gem longa: espelho, refrigerante, biscoitos, chucrute que sua avó fez e o famigerado gato.
Anda tranqüilamente algumas quadras até que chega ao inevitável risco de entrar na favela... Hesita em entrar, ora, benze-se, respira fundo e entra. Amedrontado, passos curtos, foi andando e observando o lugar; e começou a perceber que não tinha nada de mais ali.
Começa a apreciar o local, as casas bem diferentes daquelas que costumava ver, os animais bem diferentes daqueles que costumava ter, as avós, bem, um pouco diferente da sua. O medo inicial passou e começou a andar mais calmamente pelas ruas. Até que ouviu um som, parecia ser uma música, mas não era música, sua avó lhe ensinou o que era música desde criança, música era vários sons refinados ao mesmo tempo e escritos por pessoas de nomes estranhos, e nunca o piano, que tocava desde os oito anos, faria um som parecido com aquele que estava ouvindo agora.
E lá vai o garoto correndo em direção ao som e quando vira num beco dá de cara com... uma roda de samba!!! Aquele som contagiante, aquelas mulheres lindas rebolando, aquele tanto de cerveja junto, aquilo tudo estava levando-o ao êxtase!
Meio ressabiado, ele chega perto da roda. Vai amolecendo o corpo. Os pés, não acostumados aquele tipo de música, vão ensaiando alguns passos. Ele pede uma cerveja. Toma. Cospe. Adora o sabor. Toma o resto. Pede outra. Pede outra. Pede outra. Pede mais uma. Fica bêbado...
Depois de algumas horas, embriagado, sambando como se só tivesse feito isso na vida, vem uma mulata sensacional na sua direção. Ele tenta não parecer tão bêbado, mas não consegue. Ela começa a se esfregar nele, e o garoto fica sem entender o que está acontecendo. Ele sente alguma coisa crescer em seu corpo, ele sente seu corpo expandir até chegar ao céu. Céu? Isso! Isso, céu! É como se estivesse voando...
A gostosona se afasta e o garoto vai embora meio abestalhado sem saber porquê sua calças estavam grudando nas pernas. Bêbado, caminha vagarosamente pelas ruas de um mundo desconhecido.
Caminha, ainda com o gato, por mais algumas quadras. Levanta os olhos e vê que falta poucos metros para sair da favela. Mais alguns passos e ouve um grito abafado. Gira o corpo em todos os sentidos procurando a origem do barulho, mas não vê nada. Mais alguns segundos se passam e ele ouve outro grito abafado seguido de um choramingo. Procura de novo e nada.
De repente, os sons tornam-se seguidos e uniformes. Não demora muito, o garoto percebe de onde eles vêm: um barraco com a porta semi cerrada. Cautelosamente ele entra para ver o que acontece no interior. Vai andando, passos lentos e macios, os gritos vão ficando mais altos... Ele fica atrás da parede e tomba a cabeça para ver qual a causa do barulho. A imagem: uma mulher caída com a cabeça cortada, uma garrafa de pinga quebrada no chão e a cena mais terrível de todas; um homem alto, forte, nu em cima de uma menina, com a mão direita na boca da criança. Um estupro... o grito era inevitável!!!
O rapaz, apavorado, chora e geme. Não sabe o que fazer, não consegue correr. O homem pára o que está fazendo e olha com cólera para o rapaz. Seus olhos, vermelhos e trincados, aliados ao cheiro horrível de álcool que exalava do local e da mulher e da criança machucadas tornam o ambiente assustador, digno de uma história de terror.
_ O que acontece aqui em casa só eu, minha mulé e minha fia tem que sabê! Ninguém mais pode vê nada... O que eu fiço, fiço com a minha fia, ninguém tem nada com isso! Que que cê tá oiando, muleque? Nunca viu? Vô te matá desgraçado!!!
O garoto solta o gato e sai correndo desesperado. O homem levanta, pega uma enxada e corre atrás dele. Os gritos e a correria chamam a atenção da população que vai até o local para ver o que acontece. Chegando lá, as pessoas vêem a cena e a interpretação não pode ser outra: o rapaz, que veio de outro lugar, entrou na casa, quebrou a garrafa na cabeça da mãe e estuprou a menina; o pai, chegando em casa e vendo a situação em que sua família estava, decidiu agir com e defender a honra da filha.
_ Pega o safado! Vamu lincha ele! Filho da Puta!
O garoto corre por alguns metros, até que se vê cercado por umas trinta pessoas, todas armadas e sedentas de justiça. Aquilo não pode ser verdade, deve ser efeito do álcool ou ele deve estar sonhando (pesadelando). Ele não consegue explicar que é inocente, apenas chora e tenta rezar.
Cercam o garoto. Jogam o gato decaptado na sua frente. Ele se encolhe todo, não sabe o que fazer. Vêm o primeiro golpe: uma enxadada, de cima para baixo, no peito; a dor e o sangue provavam que ele não sonhava. Foram vários golpes, chutes, pontapés, garrafadas e uma população tranqüila, com a consciência limpa, certa de ter feito o melhor, ter livrado o mundo de um marginal.
E não era só do gato que a avó sentiria falta aquela noite!