segunda-feira, janeiro 31, 2005

fragmentos carnavalescos I

rubem fonseca
JOSÉ - UMA HISTÓRIA EM CINCO CAPITULOS
capitulo V - o carnaval (fragmento)
Para aumentar a sedução da cidade, a atração que ela exercia sobre José, alguns meses depois de morar no centro e de explorar e conquistar avidamente seu novo território, aconteceram os quatro dias de Carnaval. As ruas e praças em volta da casa dele, a avenida Rio Branco, a 13 de Maio, o largo da Carioca, a Cinelândia, se encheram, de repente, de mulheres lindas fantasiadas de odaliscas, colombinas, tirolesas, índias, ciganas, que pareciam ter vindo de um outro mundo; foram ocupadas por grupos de pessoas fantasiadas cantando e dançando ao som de bandas de música; pelos carros abertos fazendo o corso; pelo desfile dos préstitos das Grandes Sociedades os Fenianos, os Pierrots da Caverna, os Tenentes do Diabo, o Clube dos Democráticos. E havia as serpentinas e os confetes coloridos, no ar o aroma do lança-perfume, éter perfumado em bisnagas de vidro ou metal, que as pessoas esguichavam umas sobre as outras, e que, quando aspirado em pequenas doses, o que era comum, causava uma embriaguez instantânea, mas de curta duração. (Alguns sujeitos brigões, ou cretinos, gostavam de jogar o éter das bisnagas nos olhos dos outros, o que causava uma forte ardência, também passageira.)
No último dia de carnaval, a terça-feira gorda, que os franceses chamam de mardigras, que antecede a quarta-feira de cinzas, as pessoas cantavam com uma desesperada e masoquista alegria "é hoje só, amanhã não tem mais, é hoje só, amanhã não tem mais!", e naquele dia e muito depois em outras terças-feiras carnavalescas esse refrão enchia José de tristeza, o carnaval ia acabar. Não entendia porque as pessoas faziam questão de gritar esse inútil estribilho doloroso de alerta. Nesse dia, ele foi para casa e ficou até o sol raiar no balcão do seu sobrado, para ver os últimos blocos deslocando-se pela rua Sete de Setembro entre a Praça Tiradentes e a Rio Branco. Ouviu, ao longe, na madrugada cinzenta o derradeiro bloco se aproximando, apenas o barulho cadenciado dos tamancos no asfalto, uma anunciação misteriosa, não assustadora, apenas melancólica, do fim do mundo. Quando naquela manhã cinérea o bloco se aproximou e passou em frente à sua janela, marchando num compasso lento de rancho, José pôde ver a todos, homens e mulheres e crianças, pretos, mulatos e brancos, pobres, com suas fantasias consumidas, cansados, mas com um sentimento de coragem resignada, ou de esperança, ou de seja-o-que-Deus-quiser; e pôde ouvir o samba que cantavam – "o orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu, e também vão sumindo as estrelas lá no céu, tenho passado tão mal, a minha cama é uma folha de jornal".
No dia seguinte, o mundo tinha se modificado, pessoas estranhas e feias e sem alma caminhavam pelas calçadas. De uma hora para outra a alegria e o amor tinham desaparecido da face da terra, e ele, imprevidente ou impotente, não conseguira tornar permanente a imensa felicidade que havia sentido, estava tudo acabado e perdido, o que vira e sentira parecia impossível de ser revivido em seu coração - amanhã não "tinha" mais. Hoje, ele vê as fotos antigas do carnaval, e aqueles foliões e foliãs, mortos e esquecidos, são efemeramente ressurrectos pela sua imaginação.